Interpretações de estranha moral
Interpretações de estranha moral
Esta reflexão tem como referência o capítulo XXIII: Estranha moral, do
livro O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, em que certas
palavras atribuídas ao Cristo contrastam com o seu modo habitual de falar e
agir diante de interpretações literais que escurecem a sublimidade de sua
doutrina.
No capítulo XXIII, citam-se passagens evangélicas relacionadas a: odiar
os pais; abandonar pai, mãe e filhos; deixar aos mortos o cuidado de enterrar
seus mortos; e não vim trazer a paz, mas a divisão.
Em nosso meio já houve questionamentos a esse respeito, como na Parábola
da figueira que secou, causando estranheza o texto do Evangelho de Marcos:
“Quando saíam de Betânia, Ele teve fome; e, vendo ao longe uma figueira,
para ela encaminhou-se, a ver se acharia alguma coisa; tendo-se, porém,
aproximado, só achou folhas, visto não ser tempo de figos. Então, disse Jesus à
figueira: que ninguém coma de ti fruto algum. – O que seus discípulos ouviram.
No dia seguinte, ao passarem pela figueira, viram que secara até a raiz. Pedro,
lembrando-se do que dissera Jesus, disse: Mestre, olha como secou a figueira
que Tu amaldiçoaste. – Jesus, tomando a palavra, lhes disse: tende fé em
Deus. ...” (Marcos, 11:12-14 e 20-22)
Um leitor perguntou: “retornando ao comentário; cada vez que procuro
entender parece que é como se eu vivesse justamente naquele tempo, desculpas,
mas, acho que as palavras usadas não condizem com a moral do Nosso Senhor Jesus
Cristo?”
É exatamente nesse contexto que Kardec desenvolveu o comentado capítulo.
Não raro, observamos textos evangélicos que não condizem com a
amorosidade do Mestre Jesus. Com certeza, a intepretação não pode ser literal.
Importante recordar que o Cristo não deixou nada escrito. As palavras de
vida eterna, os seus ensinamentos e exemplos ficaram gravados nos corações e
nas mentes dos discípulos e das pessoas, e transmitidas e multiplicadas
oralmente.
Os evangelhos foram escritos muito tempo depois de sua morte e
ressureição, aproximadamente de 60 a 100 anos DC, ou seja, nenhum deles foi
redigido enquanto Jesus viveu.
Haroldo Dutra Dias, no livro O Evangelho de João: interpretado e
comentado, fez comentários muito ao propósito desse tema:
“... João ditou o Evangelho quase no final do primeiro século ... (...)
Ademais, importante destacar que João ditou o Evangelho, primeiramente,
porque já estava muito velho; e escrever, no século I, era muito difícil, e
mais difícil ainda era escrever em um pergaminho, um ofício que requeria uma
habilidade rara. Por isso, havia artesãos da escrita, os chamados escribas, que
se dedicavam a vida inteira a esse trabalho. (...)
De acordo com essa configuração, João ditou o Evangelho. É importante
salientar esse detalhe – a linguagem do Evangelho é oral. Em momento algum,
João sentou-se para escrever um livro, ele simplesmente ditou ... (...) É
essencial recuperarmos essa dimensão oral do Evangelho de João. (...)
Naquela época, para conseguir se comunicar com os habitantes dos
diversos países e das comunidades do Mundo Mediterrâneo era preciso falar
grego, portanto, o Evangelho de João foi redigido em grego. (...)
Ressaltamos que a questão da linguagem é um fator de relevância para a
compreensão desse Evangelho.”
Em decorrência, alguns textos sofreram problemas de traduções, em
especial quando do grego, sendo lícito acreditar que o pensamento do Mestre
pode não ter sido bem expresso, ou, passando de um idioma para outro, há de ter
ocorrido alguma alteração.
Além disso, nos textos evangélicos há diferenças que evidenciam a
influência pessoal de quem redigiu, sem deixar de lado a inspiração divina.
Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, chamados de sinóticos, têm
aspectos comuns e diferenças. As semelhanças vão de algumas palavras a textos
inteiros. As diferenças nas narrativas são de fatos e acontecimentos
relacionados à vida e à missão do Cristo, com certas discrepâncias. Mateus e
João foram apóstolos de Jesus, enquanto Lucas e Marcos não conviveram com ele.
Ademais, vários textos são eivados de alegoria, conduzindo a não fazer
interpretação literal, porquanto uma mensagem equivocada não exprime com
exatidão o real pensamento, enganando o verdadeiro sentido.
Em O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, na questão 627, temos
com resposta:
“Jesus empregava amiúde, na sua linguagem, alegorias e parábolas, porque
falava de conformidade com os tempos e os lugares. Faz-se mister agora que a
verdade se torne inteligível para todo mundo. Muito necessário é que aquelas
leis sejam explicadas e desenvolvidas, tão poucos são os que as compreendem e
ainda menos os que as praticam. A nossa missão consiste em abrir os olhos e os
ouvidos a todos, confundindo os orgulhosos e desmascarando os hipócritas: os
que vestem a capa da virtude e da religião, a fim de ocultarem suas torpezas. O
ensino dos Espíritos tem que ser claro e sem equívocos, para que ninguém possa
pretextar ignorância e para que todos o possam julgar e apreciar com a razão.
Estamos incumbidos de preparar o reino do bem que Jesus anunciou. Daí a
necessidade de que a ninguém seja possível interpretar a lei de Deus ao sabor
de suas paixões, nem falsear o sentido de uma lei toda de amor e de caridade.”
Logo, palavras tomadas ao pé da letra tendem a transformar a missão do
Cristo de amor e paz em outra de perturbação e discórdia, consequência absurda
que o bom senso repele.
Haroldo Dutra Dias aponta outros detalhes importantes no seu livro Parábolas
de Jesus: texto e contexto, como veremos a seguir: “Jesus compunha suas
peças pedagógicas com elementos extraídos do cotidiano daquele tempo, não do
nosso. A referência cultural não é aquela fornecida pela Sociedade ocidental
contemporânea. É preciso viajar no tempo. Há dois mil anos... (...) A
perspectiva de Jesus é a dos Espíritos Puros, em plena comunhão com Deus.”
Do que foi dito, não há como mudar o texto evangélico, mas a
interpretação sim.
A interpretação tem que ser segundo a lei de Deus, a lei maior do amor
traduzida na caridade, com os atributos divinos, à imagem e semelhança do
Criador eterno, em especial com bondade, justiça e misericórdia. Têm que ser
palavras da verdade imutável, de fé, esperança e consolo.
Devemos perguntar: Será mesmo possível que Jesus, a personificação da
doçura e da bondade, que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito
isso? Não estarão essas palavras em contradição flagrante com os seus
ensinamentos e exemplos?
Importa, primeiro, saber se Ele realmente pronunciou certas palavras e,
em caso afirmativo, se, no idioma em que se exprimia, as palavras tinham o
mesmo significado.
Destaca-se que o Evangelho de Jesus é código moral por excelência porque
trata da lei maior de amor, cujos preceitos orientam como deve a criatura
humana se conduzir no bem, em qualquer tempo, situação ou contexto.
É preciso se libertar de interpretações literais que ainda se encontram
enraizadas no nosso íntimo. O Evangelho é verdade e base para a redenção das
almas a caminho do Pai.
A chave para compreender e vivenciar a mensagem de Jesus é de ser
entendida no sentido espiritual e atemporal. A inteligência da leitura dos
evangelhos conduz a uma interpretação espiritual que Jesus dá aos seus ensinos.
Se os Evangelhos fossem amontoado de alegorias sem significação espiritual,
nenhum valor teriam.
Não basta ler os evangelhos, é preciso estudá-los sem ideias
preconcebidas.
Para bem compreender certas passagens é necessário que se conheça o
valor das palavras nelas empregadas que caracterizam os costumes da sociedade
judia naquela época. Já não tendo para nós o mesmo sentido, essas palavras
muitas vezes têm sido mal interpretadas, causando incerteza.
A Doutrina Espírita procura intepretações mediante estudos e análises
sob a ótica do Evangelho redivivo, cujos esclarecimentos e ensinamentos focam a
pessoa e o seu interior para estimular a renovação e a regeneração. Propõe a
reforma íntima como a luta necessária contra as próprias imperfeições para
seguir o caminho do progresso espiritual.
Essas intepretações buscam afastar o sentido literal dos textos
evangélicos, abandonando rituais, fórmulas, dogmas e tantas outras
manifestações de culto externo que nos afastam do Cristo e de Deus.
Elas devem priorizar atemporalidade, universalidade e consequências
exclusivamente morais. Nesses termos, a melhor interpretação dos ensinos de
Jesus é aquela que faz a pessoa melhor.
A Doutrina Espírita, no estudo do Evangelho, procura a essência da
mensagem cristã, livre de interpretações pessoais, de dogmáticas e de
conveniências circunstanciais.
O conhecimento dos fatos históricos e culturais, as posições
geográficas, os cargos e as práticas usuais de uma sociedade podem auxiliar na
interpretação do Evangelho.
É preciso conhecer, meditar, sentir e vivenciar a mensagem do Cristo.
Meditar a mensagem do Cristo: trata-se de análise racional ou cognitiva
do texto, que é exercitada por meio dos usuais critérios de interpretação
textual: localização das ideias principais e secundárias; identificação de
palavras-chave em uma construção frasal e, no final, saber especificar qual é a
mensagem do texto.
Sentir a mensagem do Cristo: nessa etapa, a análise é de natureza
emocional: são detectados sentimentos ou emoções despertadas pela leitura e
análise da mensagem.
Vivenciar a mensagem do Cristo: refere-se à introspecção da mensagem e à
mudança comportamental subsequente. É tarefa que caracteriza decisão
individual.
Outro aspecto de suma importância é que, pela imortalidade do Espírito,
sem a crença na vida futura e na reencarnação em pluralidade de existências,
muitas passagens evangélicas não fazem sentido.
Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, no Capítulo II, Kardec ensina
que sem a crença na vida futura nenhuma razão de ser teria a maior parte dos
preceitos morais ensinados nos evangelhos. A ideia clara e precisa que se faça
da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes
consequências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto
de vista sob o qual encaram eles a vida terrena.
Para a Doutrina Espírita, os Espíritos são permanentemente criados
simples e ignorantes por Deus e as suas existências não têm fim. A partir da
criação espiritual, eles começam suas jornadas evolutivas na busca da perfeição
em pluralidade de existências. Isso porque sem a reencarnação em pluralidade de
existências não é possível atingir o aperfeiçoamento e a evolução espiritual,
pois na questão 132 de O Livro dos Espíritos: “Deus lhes impõe a
encarnação com o fim de fazê-los chegar à perfeição”.
A imortalidade do Espírito e a vida futura são de difícil aceitação e compreensão,
apesar dos testemunhos e das revelações evangélicas, bem como do ceticismo para
com os fenômenos espirituais e da descrença nas comunicações mediúnicas
recebidas por inúmeros médiuns, independente de eles serem religiosos ou não.
Kardec, no item 17 do Capítulo IV: Ninguém poderá ver o Reino de Deus se
não nascer de novo, em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, expressou: “Sem
o princípio da preexistência da alma e da pluralidade das existências, são
ininteligíveis, em sua maioria, as máximas do Evangelho, razão por que hão dado
lugar a tão contraditórias interpretações. Está nesse princípio a chave que
lhes restituirá o sentido verdadeiro.”
Por fim, por haver relação com esse tema e nossas reflexões, gostaria de
citar parte do texto “A letra e o Espírito”, de Vinícius, do livro Nas
pegadas do Mestre, que diz:
“As palavras que vos tenho dito são espírito e são vida; o espírito é o
que vivifica, a carne para nada aproveita. (João, 6:63) (...)
A lei é a manifestação gráfica da ideia, como a palavra é a sua
manifestação verbal. A ideia é que vivifica a letra. Esta sem aquela é morta. A
letra está para a ideia – que é seu espírito –, como o corpo está para a alma.
Corpo sem alma é cadáver. A letra, sem o seu respectivo espírito, é um sinal
vão, inexpressivo, morto.
O homem, depois de cadáver, perde tudo que o distinguia; é massa inerte
que se pode transportar para onde se queira, que se pode vestir ou despir. Está
por tudo, não tem vida; e onde não há vida não há ‘querer’.
É precisamente essa a condição da letra desacompanhada do seu espírito:
é cadáver. Podemos dar-lhe a interpretação que melhor nos convenha, podemos
vesti-la desta ou daquela roupagem, ou de todo despi-la se assim o entendermos.
Ela nada diz, nada protesta, a tudo se submete, mesmo à satisfação dos
caprichos mais extravagantes: ‘perinde ac cadaver’.
Quando, porém, a letra é mantida com o espírito que lhe é próprio,
jamais podemos torcer-lhe a legítima interpretação sem incorrer em contradições
que os fatos virão logo, fatalmente, demonstrar à luz de toda a evidência. E
isto sucede porque é na ideia oculta através da forma que está a vida, a
verdade revelada do Céu, essa rocha sobre a qual Jesus assentou os fundamentos
da fé.
Eis aí a distinção entre as obras dos homens e a obra de Jesus Cristo.
Os homens fundam sua política e suas religiões sobre dogmas intangíveis, dogmas
que são montões de letras mortas, sem espírito, e, portanto, ineficazes para o
fim a que pomposamente se dizem destinar.
Jesus Cristo levantou o templo majestoso da verdade sobre a ideia viva,
sobre a manifestação inequívoca do espírito atuando fortemente sobre a
consciência, sobre o cérebro e sobre o coração do homem, conduzindo-o à
realização dos altos e gloriosos destinos que lhe serão reservados.”
Bibliografia
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